terça-feira, 15 de março de 2016

O Jardim do poeta

A madorna traz consigo uma névoa, um fluxo rebelde que balança a palmeira e faz ressoar um assobio triste. O jardim contorcido de flores murchas e rebento minguado aparecem
 no sonho vespertino como oásis, mas a lamúria e a solidão disputam o pequeno recanto, querendo assaz abafar o pouco e frágil suspiro que resta. A mansidão da luz que se derrama sobre esse canteiro de sofreguidão faz parecer que o tempo era algo na imaginação de uma criança moribunda e a verdade não é senão um falso alento que conduz para uma armadilha fatal. Entrementes as folhas secas e a cama de felholho, pequeninos bichos vicejam e grassam, deixando um ar sutil de que a vida não pára. Nem tudo é desolação, nem tudo é desgraça nessa horta mortífera onde a sebe protege o vinhedo da loucura e da dor. Há, imiscuído nos arbustos ressequidos, um cuja mão se estende e sinaliza uma trilha alternativa, até favorece um bocado de pão duro e água barrenta que possa minorar os efeitos da ignomínia e abandono. Esse ninguém que alça a mão trêmula e com voz murmurante oferta um centil é precisamente a necessidade. Ela que por tanto tempo esteve oculta na ignorância e sorrateira deixou-se obscurecer ante as expectativas vãs. Agora, surge macilenta e taciturna, prospetando o único veio de libertação. Não é o fingimento que a torna enérgica, mas a impotência do mísero vagabundo, lançado aos trapos do desprezo e aceito como verme de si. Ela, a privação, negocia a alma moribunda e deleita-se em entregar-lhe migalhas, trazendo-a de novo à realidade daquele lugar ameno. Não parta sem antes saber quem és. Diz a voz da inconsciência, que é louca mas detém o poder do encadeamento e as chaves da soltura. Se partires assim, emenda, não te acharás no caminho que procuras e não chegarás a lugar próprio, estarás perdido e ermo como sempre. Encontrarás a ti solitário e longe, sem recurso, sem desejo, sem sonho, sem lume, sem horizonte, quer dizer, retornarás aqui e agora e conhecerás o teu presente sem máscara ou nevoeiro. Como cheguei aqui? Esse solilóquio brotou da consciência contaminada de desespero. Certamente não há resposta pronta para a animação infértil da percepção. Achava-me ninguém, contudo, ninguém sou, porque a natureza dessa criação é débil e fugaz e não teceu na textura do seu discurso o termo próprio que me designasse, portanto, indeterminado sou. Como me imagino, sou. É fato, porém, que no âmbito imaginativo tenho divagado das profundezas às alturas, sem sequer projetar um milímetro de realidade. Não se dá o caso de que haja perdido a razão, não é isso! Nunca a encontrei. Provavelmente eis o motivo que me trouxe aqui, a essa sementeira infrutuosa e árida, de olor fúnebre e aspecto monocromático. Não sinto-me menos ou mais pela ambientação, mas creio que algo verminal está a me corroer as entranhes, a cada vez que o amanhecer se enrubesce e se debruça no colo do arrebol, deixando para trás os laços frouxos e promessas incultas. Acho que me perdi pelas palavras e pelas aparências. Não estou em mim, no meu lugar próprio, mas em oculto de mim, nem tenho porquê ou vantagem de cultivar o isso que aparento ser. Minhas mágoas se dão ao léu e irritam-me a hipocrisia, a falsidade, por isso preciso mesmo mentir e mentir, para que a verdade seja conforme a bula dos covardes vendilhões. Temo não achar o caminho de volta para o meu próprio, para o aconchego e cuidado da minha vontade. As flores esturricadas e os espinhos argutos da minha expectativa me levam nacos de carne e a calmaria assa, no forno temporal, a maciez restante da minha pele exposta. Não vejo com os olhos iluminados a brancura do dia e nem se turva minha ótica na escuridão, sempre tudo está nublado e eu sou uma nuvem dispersa e sem chuva, pairando no oceano da tribulação. Guardem-me as horas e conduzam-me os ventos, para onde deve ir a alma sequiosa e solitária de um poeta vagabundo e senil. 

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